Minha homenagem à Lapa (Elaine Guedes)

13/06/2016 09:41

Minha homenagem à Lapa (Elaine Guedes)

Passei pela cidade olhando o chão, e no chão estavam aquelas pessoas magras quase sempre juntas. Não consigo ver a cidade sem vê-las, porque são elas que me fazem andar menos distraída, Então como olhar a cidade e ignorar esse caos que desfaz o ritmo dos transeuntes que passam no mesmo lugar e no mesmo horário todos os dias? Na cidade tem muitos saltos, bolsas falsificadas e tem os homens calmos na hora do almoço, debatendo bobagens. 
Não vejo mais alguém que passeia, porque quase todos correm,a não ser os turistas muito despojados, algo alemães na vestimenta, aquele ar europeu que anda com máquinas fotográficas pelos mesmos lugares que nos assustam, e por que será que nunca vi nada acontecer a eles? Porque eles se repetem nessa passividade que talvez os deixem transparentes? Vai que ficam mesmo...
Nós estamos mais próximos dos meninos de dez anos que se juntam pra nos tirar algumas coisas no caminho, nós estamos mais próximos daqueles que dormem nas ruas, ou das mulheres que vendem balas com as crianças a tiracolo. Todos os dias nos repetimos nos mesmos horários e mesmos lugares, mas a verdade é que vemos os vultos e não decoramos os rostos. Não sabemos os nomes nem os tons de voz. São como sombras e zumbis que nos deixam alertas no centro do Rio de Janeiro, eles são como as obras que nos incomodam, nós até talvez esperemos que eles se vão com o término delas. Os famintos são passageiros, podemos pensar, vai passar.
Não que passar seja mudar suas vidas, passar é mudar as nossas.
Até o dia que vi livros na calçada, ali no que era a casa de alguém, alguém de passagem. Foi o único que me pareceu que passaria não de mim mas de si mesmo, algo naqueles livros sem gente mas com um dono em algum lugar. 
Mas também aqueles livros tinham algo de cruel na cena, mais cruel ainda que todos os outros rostos que não enxergo. Não eram gente magra mas eles eram uma fome maior, mais duradoura, mais gritante, aqueles livros na calçada me chamaram e fincaram seu lugar com respeito, quase eram uma estante, só não o eram porque não pareciam livros fechados , pareciam muito mais abertos constantemente, fechados casualmente. Esqueci de dizer, os livros tinham espirais, e livros de espirais são didáticos.
E ao lado deles começou a se formar uma imagem com rosto, um corpo começou a se desenhar , sentado ali no chão , esperando por um tempo e uma calma para estudar. Esse rosto que não estava presente é o inesquecível detalhe de como vivemos agora, em 2016 no Rio de Janeiro, ele é um escorregar da fantasia nebulosa e escondida para a claridade da realidade cruel da cidade, que come seus habitantes músculo por músculo, ate comer sua sanidade e sua vontade final. Vontade de mudar, de estar, de contemplar, de compartilhar , de conviver, não como uma sombra que incomoda e suja a paisagem, mas com corpo e alma, e uma voz com toda uma vida pra dizer.

 

O texto é especialmente dedicado a todos da UFRJ, que transitam entre os três prédios de atividades da Lapa ao prédio da Petrobrás.